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Justiça Reprodutiva: conceito criado por mulheres negras e usado pela ministra Rosa Weber em seu voto histórico (*)

Lúcia Xavier (Coordenadora geral de Criola, organização de mulheres negras)

Introdutoriamente é preciso resgatar o significado histórico dos conceitos de saúde sexual, direito sexual, direito reprodutivo e saúde reprodutiva para as mulheres negras. Esses conceitos remetem a contextos que estruturam o racismo nas nossas vidas, estreitamente ligados aos processos políticos de emancipação e enfrentamento da questão. São conceitos que estão na base do racismo, assim como a violência sexual é a base do racismo. As referências à saúde sexual e reprodutiva, para nós, mexem contundentemente com uma estrutura política de pensar a experiência de vida das mulheres negras – no nosso país e no mundo inteiro – como experiência de opressão, que se perpetua. E nos remetem à indagação: quais estratégias podem dar conta dessas dimensões e dinâmicas que enfrentamos?

Somos campeãs em várias situações e aqui cito a morte materna e a violência sexual. Somos campeãs nos dados de discriminação no interior dos serviços de saúde. As dimensões dessa violência atravessam os contextos políticos e se institucionalizam como experiência de vida. Desde que nascemos, vivemos a experiência de violência, e isto amalgama o futuro, ditando como viveremos e como reagiremos a esse processo. Se é o racismo que define a mulher que somos, qualquer atuação nesse campo parece inadequada a uma perspectiva de enfrentamento aos problemas que esse campo apresenta.

Criola retomou, a partir de 2018, o debate sobre qual seria a melhor estratégia para enfrentar a violência sexual. Recuperamos o conceito de Justiça Reprodutiva, construído pós Cairo, em 1997, por mulheres insatisfeitas com a definição dos Direitos Sexuais e Reprodutivos. Essas mulheres trouxeram diferentes aspectos referindo-se não somente ao momento da gravidez, do puerpério ou da maternagem, mas falando justamente da estrutura racista e de violência que define um contexto de vida que impede a vivência da sexualidade e da reprodução com algum tipo de liberdade, de autonomia ou de condição material para as mulheres.

Justamente por isso o tema é complexo: porque se eu falar de Justiça Reprodutiva parece que se tiver água em casa está tudo resolvido. É evidente que se tiver água, creche, menos violência, participação civil, a vida vai melhorar mas, necessariamente, isto não quer dizer que se consiga quebrar a estrutura básica da violência racista que nos leva às experiências que as mulheres negras têm. O conceito de Justiça Reprodutiva ajudou a alargar a perspectiva de luta concreta e real por Direitos Sexuais e Reprodutivos. Entretanto, considerando o quanto Direitos Sexuais e Reprodutivos são interdependentes dos direitos sociais, não é possível ter direitos sociais se não tenho direitos políticos ou ambientais. Nesse sentido, esta perspectiva reforça uma necessária estratégia de compreensão e solução do problema.

Isto significa que hoje, pensar Justiça Reprodutiva, é alargar as estratégias e pesar outras possibilidades. Nossa realidade não é fácil e a perspectiva da maternagem cai como uma luva: mulheres que têm suas relações filiais interrompidas pela violência, mulheres que ainda assim sofrem criminalização por escolher o aborto. Em todas essas situações verificamos que a estratégia poderia alargar nossa atuação e poderia construir um contexto de direitos consistentes nesse campo. Então, desde 2018, temos construído uma abordagem trazendo novos elementos à compreensão sobre a vida das mulheres e sobre como estabelecem valores e dinâmicas que são fundamentais para viver a liberdade e qualidade de vida, como uma mulher.

Quando olhamos para esse campo, nos deparamos com as identidades de gênero, que hoje em dia, constroem uma inflexão sobre o feminismo e o antirracismo, e sobre as perspectivas estratégicas construídas nessa luta. Se as pessoas com diversas identidades de gênero não conseguem também acessar a justiça reprodutiva, é preciso incorporar esta dinâmica na luta das mulheres negras, para alargar os horizontes e buscar a forma de enfrentar o sistema discriminatório e racista.

Mesmo que aparente estar acabado, o conceito de Justiça Reprodutiva não está fechado. Muitas pessoas o utilizam a partir do campo da saúde, o que faz com que o conceito se conecte com essa dimensão. Com isto, justifica-se a perspectiva, e sua reprodução na leitura sobre direito ao aborto e direitos no campo da maternagem. Mas, na verdade, todas essas dimensões estão em disputa: está em disputa o desenvolvimento populacional; está em disputa pensar quem, entre as mulheres, pode engravidar; quem pode criar seus filhos. E não está em disputa só na sociedade, mas também entre nós, entre os movimentos e articulações a que pertencemos. Não à toa, não encontramos organizações das mulheres negras significativamente presentes no debate sobre aborto ou sobre os Direitos Sexuais e Reprodutivos. Isto não quer dizer que não estejam trabalhando, ou produzindo sentidos. Essa construção política é complexa, e não somente por causa da história, mas porque não foram sanadas essas distintas questões, que se referem a quem, de fato, pode viver plenamente sua sexualidade, as dimensões da reprodução e poder gozar de todos os direitos necessários para que estas se realizem.

Sendo uma tarefa difícil, ela é experimentada por diferentes grupos que, entretanto, ainda não logram se conectar com a mulher de verdade, aquela que enfrenta cotidianamente o problema, aquela que sofre violência, aquela que tem interrompida a maternidade, que não tem voz na sociedade, que não vive sua condição de cidadania. Esse exercício passa pelo direito ao aborto, mas precisa passar também por todas as dimensões políticas e demandas que essas mulheres apresentam.

Hoje as encruzilhadas são finas. As mulheres perdem seus filhos pela violência do Estado. O mesmo Estado que as mata na hora de parir, também mata se elas decidem não parir e toda essa dinâmica precisa ser escutada, discutida, e bastante criticada para trazermos esses elementos do cotidiano, ao cotidiano do debate.

O conceito é fundamental e hoje, abre o horizonte permitindo novas formas de pensamento por parte dos movimentos que atuam no campo dos direitos das mulheres. No momento atual, atravessamos esta renovação, que admite a interposição de outros sujeitos e perspectivas políticas. Amanhã, outras questões que hoje ainda não estão colocadas, surgirão seja como barreiras, ou como avanços.

Há, no voto da ministra Rosa Weber, um engodo político quando ela baseia o acesso à Justiça Reprodutiva no acesso à saúde. Seu texto afirma que a falta de acesso à saúde de qualidade é o que pode produzir injustiça, uma injustiça que amplia ou fortalece um problema de saúde pública, que é o aborto. Na verdade, esta perspectiva não traz novos elementos, mas reorganiza estes elementos dentro de um contexto, remetendo-se a um conceito que está em disputa. A ministra destaca o social para dizer que ali está a saúde. Não destaca o político, onde poderia afirmar a autonomia das mulheres, a isonomia de direitos, a possibilidade de definição da sua vida e cidadania. Não destaca os direitos civis, básicos para o processo, porque envolvem o debate sobre família, sobre direitos à vida, sobre quem pode ou não tomar decisão sobre seus corpos.

Há aspectos que a Ministra poderia ter aproveitado, e não aproveitou, que são as dimensões culturais e os avanços da lei, já que a Constituição nos dá garantias de Direitos Humanos. Mesmo ciente de que todas essas dimensões são sensíveis, atualmente, a ministra optou por destacar a saúde, para o debate. Seu voto transmitiu a impressão de estar construindo algo novo ao traduzir Justiça Reprodutiva igual a Justiça Social. A Justiça Reprodutiva não pode ser confundida com a soma de políticas sociais. Afirmei, anteriormente, que a violência sexual é base do racismo. Sendo assim, não é possível haver Justiça Social ou Justiça Reprodutiva se as políticas não mudam a estrutura do sistema racista onde, inclusive, a dimensão da maternidade está posta.

É preciso pensar que temos um trabalho político a ser feito. Um trabalho de calçar esse conceito. Não se trata de um conceito simples, que sirva para se manter na disputa política de um processo do nível da ADPF 442. Trata-se de ampliar o conceito, com diferentes aspectos do direito, para além do que a ministra denomina Direitos Sociais, pois ele não é capaz de romper com a violência sexual, base do racismo patriarcal cisheteronormativo. Ao afirmar a tese de que o aborto é um problema de saúde pública e que por isso, devemos ter o direito de escolha, não movemos o principal problema que impede a autonomia das mulheres negras e promove a submissão das meninas. Usar Justiça Reprodutiva soa muito bem para nós e para outros setores, oferece a ideia de que termos acesso a direitos relacionados à família, à condição de vida das mulheres. Mas na verdade a aceitação tácita deste conceito esconde seu caráter disruptivo, pois a Justiça Reprodutiva quer mexer justamente na base do racismo que nos afeta.

Isto significa que, após tomar o conceito de Justiça Reprodutiva como conceito chave ao longo desses últimos cinco anos, devemos alarga-lo para incorporar aspectos que se relacionam com o campo, para alimentar nossa estratégia interna. É preciso voltar a pensar no significado do direito ao aborto dentro do contexto da autonomia das mulheres.

A palavra autonomia aporta, entre nós, uma dificuldade de defesa. Todas as expressões que fundam o feminismo ficam suavizadas para permitir que possam ser incorporadas e assim, perdem sentido. Autonomia não significa estar só ou não ter responsabilidade; Autonomia é fundante para um sujeito que não tem liberdade. E mulheres negras não têm liberdade. Nós somos as escravas fugidas e estamos constantemente fugindo da violência, de uma sociedade fundada no racismo.

É necessário que se problematize esse processo, para compreendermos que aquela mulher que chega ao serviço é a mulher pobre que eu vou deixar abortar porque é pobre. É a mulher que quer, autonomamente, decidir sua vida. Nesse momento jogamos fora a autonomia e incorporamos outras situações complexas, como o controle de natalidade, o perfil da população que queremos ter no país, de quem tem direito às políticas públicas e saúde no Brasil. São questões que não são respondidas facilmente, mas precisam ser sempre trabalhadas por nós para que as escolhas não ampliem as violências contras outras.

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(*) Artigo lançado no Boletim Futuro do Cuidado # 12/ Dezembro de 2023

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