Gravidez precoce e Estado: a campanha que acoberta o que realmente importa
Agnes Sofia Guimarães
Muito se fala do que as fake news ou as ações de desinformação nos oferecem em termos de desafio para a luta pelos direitos das mulheres, mas é importante ir à raiz do problema e pensar no texto, ou melhor, no discurso que mobiliza essas ações digitais ou, de forma mais ampla, midiáticas (quando pensamos nas campanhas publicitárias do governo ou até mesmo em peças veiculadas em jornais televisivos ou radiofônicos que dialogam com esses movimentos na internet ou no whatsapp).
Estamos diante de um momento que se baseia na construção de realidades por meio de palavras que afagam uma crença na defesa da moral e dos bons costumes, em narrativas que partem de ideias simples e populistas para atiçar políticas violentas, sobretudo, para as mulheres, para a população negra e LGBTQIA+ e outros grupos minorizados que foram desprotegidos pelo governo atual, mas estão expostos a uma guinada conservadora que começou já no início da última década.
Em fevereiro, o governo federal, sob a pasta do Ministério dos Direitos Humanos, lançou a versão final do “Plano Nacional de Prevenção Primária do Risco Sexual Precoce e Gravidez na Adolescência”. Vale lembrar que este mês também é o momento do ano em que a atual gestão realiza campanhas em prol da Semana Nacional de Prevenção.
O Plano foi colocado em consulta pública pela internet entre os dias 3 e 14 de janeiro de 2022. O intervalo-relâmpago estimula tantas controvérsias quanto o seu lançamento repentino, poucas semanas depois da consulta – o que pode nos levar a pensar nas motivações políticas por trás desse lançamento. Afinal, já temos candidatos à presidência que estão mirando em públicos religiosos e devem se ancorar em pautas conservadoras de gênero e sexualidade para conquistá-los. Um exemplo é o ex-ministro Sérgio Moro, que recentemente anunciou uma carta ao público evangélico, a fim de esclarecer suas prioridades de campanha. Entre elas, Moro mencionou o combate à erotização precoce de crianças, conceito que orbita em torno da exposição de conteúdos inadequados ao público infantil (ou até mesmo a sexualização do mesmo) mas que, na perspectiva do ex-ministro, pode ter uma correlação direta, e equivocada, com a educação sexual ou com estudos sobre gênero e sexualidade nas escolas. Uma posição controversa e que ele já assumiu em outras ocasiões, assim como sua posição contrária à descriminalização do aborto.
Esse posicionamento já foi encontrado, diversas vezes, na postura da atual ministra dos Direitos Humanos, Damares Alves. Recentemente, no lançamento do Plano Nacional de Prevenção Primária do Risco Sexual Precoce e Gravidez na Adolescência, ela associou os casos de gestação entre adolescentes a uma rede social muito utilizada pela faixa etária, o TikTok:
— Não vem papai e mamãe jogar no colo do Ministério da Saúde: ‘Resolva, minha filha engravidou’, depois que deixou sua filha ir pro TikTok vender seu corpo. Uma coisa está muito atrelada com a outra.
Nessa fala, a ministra entrega um dos principais motes da sua gestão e que ameaça ser um dos princípios norteadores, daqui por diante, para a abordagem sobre a relação da adolescência com a sexualidade e com a gestação precoce. Analisando os recursos discursivos que estão intrínsecos em discursos, normativas e campanhas publicitárias do ministério, o papel da família assume destaque até mesmo nas entrelinhas, como uma instituição de defesa da moral. A partir desse lugar, falar em prevenção da gravidez, para o Ministério, é repudiar direitos sexuais e reprodutivos de adolescentes – algo que já podemos encontrar no próprio título do Plano – que fala em “risco precoce sexual”.
Analisando as circunstâncias do lançamento do documento, também se destaca a hashtag “#TudoTemSeuTempo”, presente nas redes sociais do Ministério e nos materiais mais populares da campanha. Ao demarcar temporalidade e associá-la diretamente como um fator preventivo da gravidez, a Ministra busca conquistar um público conservador, religioso e que também associa a preservação da família com a repressão da autonomia do corpo para adolescentes e do pleno exercício saudável dos seus direitos sexuais e reprodutivos.
É uma disputa de linguagem que está por trás das famosas políticas antigênero. Em livro sobre o tema na América Latina, autores explicam como a ideia carrega uma linguagem “popular, versátil e do senso comum. Ela deixou a semântica religiosa para trás e se apropriou de argumentos da biologia, biomedicina, demografia, assim como da democracia, cidadania e do direito.” (CORRÊA, S.(org.), 2021, p.12-13)
A ideia de Pânico Moral de Miskolci (2009) também ajuda a entender os avanços de pautas que se espelham no discurso de proteção à família para evitar o debate sobre direitos LGBTQIA+ e direitos das mulheres ao aborto em contextos importantes de políticas públicas – como o campo da educação. Carvalho e Inocêncio, por exemplo, destacam como o conservadorismo acaba afetando o lugar de grupos historicamente marginalizados na educação brasileira, apontando um retrocesso, nos últimos anos, que impede uma formação escolar mais diversificada e alinhada com nossos tempos:
Essas alianças, proibições, tramitações políticas e movimentações sociais difusas interferiram na caminhada de respeito construída pela militância LGBT, pelos Estudos Feministas de Gênero, pela militância negra e por pesquisadoras/es e educadora/es preocupadas com o reconhecimento das alteridades nas escolas. Favoreceram o recrudescimento de outras discursividades, amparadas em determinismos morais, religiosos e/ou científicos, que se firmaram como agentes contrários à aceitação das intervenções e táticas pedagógicas possibilitadoras de compreensões diferentes dos corpos, dos gêneros e das sexualidades nas escolas. (CARVALHO; INOCÊNCIO, 2021,p. 252)
Entretanto há fatores mais urgentes quando pensamos em gravidez na adolescência. Levantamento recente da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) apontou uma queda de 37,2% dos casos de gravidez na adolescência no país entre 2000 e 2019. Mas na reportagem da Gênero e Número, por exemplo, mostramos alguns dados que já circulavam antes e que, na ausência de um olhar eficaz e baseado no cuidado e na interseccionalidade, parece não ter outra resposta: a queda da gestação adolescente foi de apenas 3,6% entre meninas negras, que ainda lideram os casos, e nos piores contextos sociais.
Gênero, Sexualidade e Educação
Diversos especialistas apontam a necessidade de um ensino que ceda espaço a disciplinas específicas para acolher questões de gênero e sexualidade entre adolescentes, mas a prática mostra que essa realidade ainda está muito distante, e o Plano do governo apenas reforça isso ao não situar qualquer orientação específica e que seja centralizada na educação. Sabemos que apenas três estados (São Paulo, Espírito Santo e Minas Gerais) contam com parâmetros para que escolas de suas redes estaduais invistam em disciplinas direcionadas a tais questões.
No Plano, observamos que houve esforços em sugerir um papel para a escola na formação de adolescentes em relação a seus direitos sexuais e reprodutivos. No entanto, é um lugar coadjuvante e que não está explícito nos eixos de atuação previstos pelo Plano. Novamente, a família ganha um lugar de destaque, quando sabemos que a escola, por exemplo, poderia ser o lugar de entender questões que ainda são tabus na família. Ao mesmo tempo jovens – sobretudo meninas negras e que são majoritariamente sexualizadas pela sociedade – podem ter a escola como alternativa para compartilhar com professores e professoras situações de abuso que, pelas denúncias, sabemos que na maior parte das vezes têm pessoas conhecidas e familiares das vítimas como agressores.
Também não há o compromisso em pensar ações de combate à violência sexual – algo que, segundo especialistas, é um dos fatores que justifica a urgência de pensar em gênero e sexualidade na educação. A ausência dessas propostas no Plano apenas acentua sua intenção mais doutrinária em relação à sexualidade de adolescentes do que a de estabelecer estratégias concretas de conscientização e acolhimento.
Justiça Reprodutiva, disputas políticas e informacionais
A campanha também pode deixar de lado outro fator: a gravidez na adolescência é uma realidade no país e se é importante pensar em políticas efetivas para preveni-la, também é importante refletir sobre o lugar em que programas que se apresentam como combativos situam adolescentes que já conhecem a maternidade. Uma questão já considerada endêmica na América Latina não se resolve a partir de políticas de abstinência e de propagação do sexo na adolescência como risco, mas a partir de um olhar de direitos, e de situar o contexto e as identidades das meninas e adolescentes que mais enfrentam o problema.
Diante do retrocesso, resta lutar pelo fortalecimento das lutas encabeçadas por mulheres e pela população LGBTQIA+ no campo político, ao mesmo tempo em que se faz urgente pensar em como a defesa da informação, seja ela midiática ou seja aquela que circula nos espaços de ensino, também é uma forma de combate diante do obscurantismo propagado por alas conservadoras que estão articulando o desmantelamento do direito das mulheres no Brasil. Nesse sentido, desenham-se nos horizontes algumas possibilidades epistemológicas – ou seja, caminhos para construir linhas de pensamento intelectual e de ação política, que vão sustentar nossas escolhas para disputar espaços.
Em relação ao gênero e à sexualidade, é importante resgatar os conceitos de interseccionalidade e de justiça reprodutiva. O primeiro é uma palavra-chave já conhecida entre ativistas e pensadoras do feminismo negro (principalmente), e também já começa a aparecer em iniciativas midiáticas e independentes. Já a justiça reprodutiva é um conceito que sai dos movimentos sociais, apesar de sua articulação com produções acadêmicas de pesquisadoras preocupadas com as particularidades de compreender saúde reprodutiva e direitos das mulheres no Brasil – e que, já nos anos 1980, caminhavam a partir de uma perspectiva interseccional, mesmo quando, por aqui, a ideia ainda não era materializada por esse nome. Afinal, estamos falando de ativistas, intelectuais, profissionais da saúde negras e feministas que já defendiam um olhar que não fosse essencialista em relação às identidades – sobretudo das mulheres. É preciso também entender as questões de raça, cor e outros cruzamentos de ser e de contexto que também afetam o acesso (ou a falta de) a políticas públicas e outros direitos.
Com o conceito de Justiça Reprodutiva, observamos como coletivos formados por mulheres negras, da área da saúde, buscam partir da defesa da saúde reprodutiva para apontar desigualdades sociais enfrentadas por mulheres não-brancas, ao observar a saúde como um lugar de atenção integrada aos demais aspectos das sujeitas (GOÉS, 2021). Hoje, essa perspectiva passa por um apagamento que o discurso conservador realiza em torno de seu projeto de controle de corpos, mas é a partir dela que os movimentos sociais precisam resistir, como uma atitude fundamental para a vitória nas próximas eleições.
(*) Agnes Sofia Guimarães é jornalista, mestra em Comunicação pela UNESP e doutoranda em Linguística Aplicada pela Unicamp. Estuda temas ligados à justiça reprodutiva, ativismo de dados e violência de gênero, sempre com uma perspectiva interseccional, e colabora para a equipe de reportagem do portal Gênero e Número.
Este artigo foi lançado no Boletim Futuro do Cuidado # 8/ Março de 2022, que pode ser lido aqui.
REFERÊNCIAS
– CARTA CAPITAL. Em carta a evangélicos, Moro pedirá combate à ‘erotização precoce’. 01/02/2022. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/cartaexpressa/em-carta-a-evangelicos-moro-pedira-combate-a-erotizacao-precoce/
– GOES, E. Justiça reprodutiva e as mulheres negras brasileiras. Nexo, 19/10/2021. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/ensaio/debate/2021/Justi%C3%A7a-reprodutiva-e-as-mulheres-negras-brasileiras.
– GUIMARÃES, Agnes Sofia. Apenas 3 estados do Brasil orientam escolas a terem disciplinas sobre educação sexual. Gênero e Número, 16/02/2022. Disponível em: https://www.generonumero.media/escolas-educacao-sexual/
– ______________________ . Gravidez na adolescência diminui, mas entre meninas negras a queda é de apenas 3,5% em três anos. Gênero e Número, 14/10/2021. Disponível em: https://www.generonumero.media/meninas-negras-gravidez-adolescencia/
– MARTINS, Aline de Carvalho. Gravidez na Adolescência: entre fatos e estereótipos. Rio de Janeiro: Editoria Fiocruz, 2021.
– MISKOLCI, R. Pânicos morais e controle social: reflexões sobre o casamento gay. Cadernos Pagu (28), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2007, pp.101-128.
– LIMA, N.D.F. Dossiê: Mulheres Negras e Justiça Reprodutiva. Organização Criola, 01/10/2021. Disponível em: https://criola.org.br/criola-lanca-dossie-mulheres-negras-e-justica-reprodutiva-nesta-sexta-feira-01-10-as-19h/
– PERES, Ana Cláudia. “Para a educação sexual ser efetiva, é necessário a substituição da religião pela ciência”. Radis Comunicação e Saúde, 8/05/2020. Disponível em: https://radis.ensp.fiocruz.br/index.php/home/entrevista/para-a-educacao-sexual-ser-efetiva-e-necessario-a-substituicao-da-religiao-pela-ciencia
– CORRÊA, S.(Editora) Políticas Antigênero na América Latina – Estudos de Caso – Versões condensadas. G&PAL, 2021. Disponível em: https://sxpolitics.org/GPAL/uploads/resumos-pt/E-book-Resumos-PT-02082021.pdf