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Brasil: as regras que puseram o misoprostol “na cadeia”

Morgani Guzzo
Jornalista no Portal Catarinas, doutora em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina (PPGICH/UFSC) e ativista feminista.

O cenário do aborto no Brasil foi totalmente modificado a partir da metade dos anos 1980, quando vendedores de farmácia e as mulheres brasileiras que recorriam a eles para “resolver situações de atraso menstrual” descobriram que um medicamento para tratamento de úlceras gástricas, o Cytotec, era muito eficaz. Já no começo dos anos 1990, profissionais de saúde reconheceram que as mulheres que chegavam às emergências obstétricas com abortos incompletos após o uso desse medicamento apresentavam um quadro muito menos grave do que era observado quando faziam uso de outros recursos, como sondas e produtos químicos.

O misoprostol é análogo sintético da prostaglandina E1, e foi reconhecido pela OMS, em 2005 (WHO, 2005), como fármaco essencial para a saúde reprodutiva, usado na obstetrícia para a antecipação de parto, o tratamento de hemorragia pós-parto e a dilatação do colo do útero nas intervenções ginecológicas. No entanto, no país em que seu uso abortivo foi “descoberto”, o uso do medicamento foi restringido de maneira draconiana. Em conversa com a pesquisadora Sonia Corrêa, percorremos momentos-chave dessa trajetória que, como diz ela, faz com que se possa dizer que, no Brasil, o “misoprostol está na cadeia”.



1986

O misoprostol passa a ser comercializado no Brasil

Assim como em outras partes do mundo, até meados dos anos 1980, as mulheres com alto poder aquisitivo realizavam abortos seguros em clínicas clandestinas, enquanto mulheres pobres faziam abortos em suas casas, usando uma série de recursos arriscados, como introdução no útero de substâncias cáusticas, sondas, agulhas de tricô ou ingestão de chás, ervas e coquetéis especiais. Muitas vezes, o sangramento uterino era provocado com o auxílio dessas técnicas para, depois, as mulheres buscarem os hospitais onde o aborto era finalizado.

Esse cenário começou a mudar em 1986, quando o Cytotec – nome comercial do misoprostol -, desenvolvido pela farmacêutica Searle, teve seu uso aprovado no Brasil para o tratamento de úlceras gastroduodenais. Como todas as prostaglandinas, o misoprostol possui também uma ação estimulante sobre a musculatura uterina, promovendo contrações, razão pela qual o medicamento passou a ser contraindicado para uso na gravidez por risco de abortamento. Com a descoberta desse “efeito colateral”, vendedores de farmácias passaram a vende-lo para quem buscava medicamentos para “fazer descer a menstruação”. Como a droga era muito eficaz, a notícia circulou amplamente.



1988

A comercialização do misoprostol passa a ser feita por um laboratório nacional, o Biolab. Nesse momento, inicia-se o debate sobre o medicamento no país

O aumento das vendas farmacêuticas do Cytotec, nos anos 1980, chamou a atenção de pesquisadoras/es interessadas/os nos efeitos colaterais de produtos farmacêuticos e de instituições ligadas à vigilância farmacológica. Estudo de Barbosa e Arilha (1993) mostrou que, naquele momento, eram três os principais posicionamentos sobre o misoprostol. As e os ginecologistas e obstetras defendiam a comercialização do produto em razão de sua importância terapêutica na indução de partos e abortos retidos e pelos efeitos positivos na redução da morbimortalidade por abortos ilegais e inseguros. Já as instituições ligadas à vigilância medicamentosa defendiam a retirada do Cytotec do mercado, por considerarem que o medicamento estava sendo usado não para sua finalidade terapêutica, mas sim pelo efeito colateral que causava. E, essa posição também era defendida por setores que se opunham ao direito ao aborto que, na época, eram fundamentalmente vozes católicas, muitas delas atuando no campo da saúde e da vigilância farmacêutica. A partir dos anos 1990, esse debate ganharia uma nova escala, iniciando-se uma verdadeira cruzada contra o medicamento.



Anos 1990

O uso misoprostol por pessoas em situação de abortamento e supostos efeitos colaterais

De acordo com Barbosa e Arilha (1993), pesquisas realizadas em maternidades públicas do Recife/PE e Fortaleza/CE confirmaram a utilização do Cytotec como abortifaciente. Em Recife, no período de outubro de 1987 a outubro de 1990, 34% de um total de 8.744 mulheres internadas por complicação de aborto haviam usado Cytotec. Em Fortaleza, em 1990, de um total de 715 casos de mulheres em situação de abortamento admitidos na Maternidade Escola Assis Chateaubriand, 72% foram provocados com Cytotec.

Essas pesquisas identificaram algumas das motivações do uso do medicamento naquele contexto. Entre mulheres com menos de 20 anos, o Cytotec facilitava a decisão com relação ao aborto; entre as mulheres de classe média, o medicamento facilitava o processo de abortamento em si, permitindo mais privacidade, promovendo menos intervenção e sendo menos traumático; entre as mulheres de baixa renda, o remédio foi reconhecido como um método mais seguro, que não mata, já que a referência que tinham do procedimento abortivo era com uso de métodos muito inseguros (BARBOSA; ARILHA, 1993).

Mais importante ainda, entre médico/as e profissionais de saúde, a avaliação sobre o uso do misoprostol foi majoritariamente positiva. “Médicos e obstetras que trabalhavam na emergência dos hospitais começaram a perceber que as mulheres já não chegavam com abortos infectados que podiam levar à morte ou esterilidade, como acontecia anteriormente. Já não havia taxas tão altas de infecção e hemorragia. Isso acontecia por efeito do uso extensivo do misoprostol”, recorda a pesquisadora Sonia Corrêa.

As pesquisas também demonstraram que houve uma diminuição do preconceito em relação ao aborto não só entre as mulheres que utilizavam o medicamento, mas também pela equipe de saúde que atendia os casos que chegavam aos hospitais. Ou seja, o medicamento reduziu o estigma da interrupção da gravidez, inclusive porque reduziu o sentimento de impotência dos profissionais frente a casos de mulheres que chegavam aos hospitais com quadros graves decorrentes de aborto infectado e perfuração uterina. Com o uso do Cytotec, a “punição das pacientes” se fez menos frequente, pois, diferentemente dos casos de aborto com outros métodos, o tratamento do aborto incompleto com o uso de misoprostol dava “menos trabalho” e reduzia a insegurança do/a médico/a (BARBOSA; ARILHA, 1993).

Segundo o estudo “20 anos de pesquisas sobre aborto no Brasil” (BRASIL, 2009), nos anos 1990, entre 50,4% e 84,6% das mulheres, principalmente do Nordeste e do Sudeste, abortaram utilizando o misoprostol. Um aumento significativo quando comparado aos números da década anterior, que variavam entre 10% e 15%.

Embora as evidências demonstrassem a segurança do misoprostol e a mudança no cenário do aborto no Brasil, Morel e Machado (2020), em reportagem publicada no El País (2020), mostraram como instituições ligadas à vigilância farmacológica se posicionaram no campo oposto ao do direito ao aborto e contribuíram para a restrição quase total do medicamento. Nesse campo, destacou-se a atuação da pesquisadora Helena Lutéscia, da Universidade Federal do Ceará. Segundo a matéria:

“A então professora tomou conhecimento da utilização do misoprostol como abortivo através de relatos de estudantes que cursavam sua disciplina de farmacoepidemiologia. Acreditando estarem diante de uma ‘epidemia do medicamento’, Helena e seus alunos fundaram o Grupo de Prevenção ao Uso Indevido de Medicamentos (GPUIM), que teve como primeira e principal pauta o uso racional e maior controle sobre o misoprostol”.

A pesquisa realizada no Ceará, coordenada pelo GPUIM, correlacionou o misoprostol à teratogenia (malformação do feto causado por agente teratogênico), apontando como efeito o lábio leporino. Segundo Corrêa, mesmo que as bases científicas desse estudo tenham sido contestadas, a pesquisa foi apropriada por movimentos e grupos antiaborto. “Muito rapidamente os resultados desse estudo foram capturados pelas redes internacionais antiaborto, que fizeram dessa pesquisa um ícone. Em meados dos anos 1990 isso já estava circulando internacionalmente”. As pesquisas do GPUIM ganharam destaque em âmbito internacional com a veiculação de uma reportagem no jornal The New York Times e a publicação de uma carta aos editores intitulada Misoprostol and congenital malformations, na renomada revista científica The Lancet (MOREL; MACHADO, 2020).

Para Sonia Corrêa, é preciso situar os efeitos políticos dessa pesquisa na atmosfera peculiar daquele momento, quando eram severas as críticas feministas às tecnologias de controle da reprodução. Essas críticas, como recorda, não eram infundadas pois, de fato, era muito extensa a lista de abusos aos direitos das mulheres, resultantes das políticas de controle populacional implementadas desde os anos 1960. Um pouco antes da visibilidade política do misoprostol, por exemplo, a pesquisa clínica do implante Norplant havia sido suspensa no Brasil por falta de cumprimento dos protocolos de investigação. Contudo, segundo ela, essas críticas justas arrastaram consigo uma aversão mais generalizada e não problematizada à tecnologia, que fez com que nem o ataque imediato ao misoprostol pelas forças contrárias ao direito ao aborto, nem as restrições draconianas ao medicamento que se sucederam tenham sido objeto de devida atenção por parte dos feminismos engajados na luta pelos direitos reprodutivos no Brasil.

A reportagem de Morel e Machado (2020) nos diz que essa desatenção teria efeitos de longo prazo. A proibição do misoprostol contou com o apoio da Sociedade Brasileira de Vigilância de Medicamentos (Sobravime), criada em 1990, cuja primeira grande pauta pública foi, exatamente, a retirada do produto do mercado. Assim, GPUIM e Sobravime foram os pilares da mobilização pela retirada de circulação do medicamento nas farmácias. Entre os fundadores da Sobravime estavam a professora Helena Lutéscia e Elisaldo Carlini, coordenador da Secretaria Nacional de Vigilância Sanitária (SVS), futura Anvisa.



1991

As restrições ao misoprostol no Brasil geram diminuição da oferta nas farmácias e da produção pelo laboratório

Em 1991, o laboratório Biolab informava que: “a utilização do medicamento para a indução do aborto (…) pode chegar a 35% do total”. Estima-se, entretanto, que esta proporção tenha sido muito maior. (BARBOSA; ARILHA, 1993). Inicialmente disponível em farmácias e drogarias, a venda do misoprostol foi, porém, totalmente proibida no Ceará em 1991, por decisão judicial. Apenas uma semana depois, a SVS (Secretaria Nacional de Vigilância Sanitária) determinou a apresentação de receita médica para compra do medicamento em todo o país e obrigou a inclusão, na bula, de frase de alerta sobre o efeito abortivo e possíveis sequelas, caso usado por mulheres grávidas.

No Rio de Janeiro e em Minas Gerais, o misoprostol seria permitido apenas para uso hospitalar, e nos outros estados a sua venda só era realizada com retenção da receita. Em São Paulo, seu uso ginecológico passou a depender de autorização do Ministério da Saúde (apenas em 1989 os casos de aborto previstos em lei começaram a ser realizados oficialmente na cidade de São Paulo). Com as restrições e com as propagandas e comerciais contrários ao Cytotec, as farmácias aos poucos foram deixando de ofertar o medicamento, o laboratório passou a produzir menos e, em 1992, as vendas foram reduzidas em 80%. Restrições mais robustas seriam adotadas em 1998.

Enquanto isso, na Europa, especialmente na França, o misoprostol começou a ser utilizado em associação com o RU-486, mais conhecido como a “pílula abortiva”. Sonia Corrêa lembra que, desde os anos 1980, pesquisadoras/es francesas/es estavam desenvolvendo o RU-486, composto de mifepristona, que bloqueia os efeitos da progesterona, um hormônio fundamental para a continuação da gravidez. Na década de 1990, o produto já estava aprovado na França e era usado nos serviços de aborto legal. Quando se começou a estudar sistematicamente a eficácia do misoprostol (prostaglandina E1), como recurso farmacológico para interrupção da gestação, muito rapidamente foram feitas investigações associando os dois fármacos, que têm efeitos diferentes, mas complementares. Essas pesquisas tiveram resultados excepcionalmente positivos. Em 2005, a Organização Mundial da Saúde passou a recomendar em suas diretrizes para atenção ao aborto, o uso combinado do misoprostol e da mifepristona.



1995-1998

Restrições ainda mais draconianas

Após as Conferência do Cairo (1994) e de Pequim (1995), o debate sobre o direito ao aborto no Brasil estava muito aquecido e a política nacional de saúde da mulher estava sendo reativada. No mesmo período, diversos projetos de lei sobre direitos sexuais e reprodutivos estavam sendo apresentados no Congresso Nacional. Sonia Corrêa relembra, por exemplo, que em 1997 chegou à Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados o PL 20/1991, de autoria de Eduardo Jorge (PT/SP) e de Sandra Starling (PT/MG), que propunha a incorporação do serviço de aborto legal pelo SUS.

“Quando o PL entrou na pauta da CCJ, houve grande embate e tumulto. O Papa tinha uma visita ao Brasil marcada para um mês depois e, certamente, as forças antiaborto pretendiam presenteá-lo com a derrota desse projeto. Por essa razão, houve grande mobilização feminista em defesa do PL, com campanhas de rua e ações no Congresso. Esse embate resultou num empate na votação da CCJ, e o voto de minerva foi dado pela presidente da Comissão, Zulaiê Cobra Ribeiro, que foi favorável à aprovação. Toda essa movimentação levaria à proposição de uma Resolução, pelo Conselho Nacional de Saúde, que terminaria se convertendo na Norma Técnica de Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes, em 1998”, relembra.

Enquanto esse debate legislativo transcorria e absorvia as atenções feministas, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) estava sendo criada. Foi nesse processo institucional menos visível aos olhos feministas que se decidiria o destino normativo do misoprostol no Brasil: o produto foi incluído na Portaria 344, de 1998, que “Aprova o Regulamento Técnico sobre substâncias e medicamentos sujeitos a controle especial”, uma das primeiras normas da Anvisa. A Portaria inclui o misoprostol na lista C1 de substâncias controladas com o seguinte texto:

“Só será permitida a compra e uso do medicamento contendo a substância MISOPROSTOL em estabelecimentos hospitalares devidamente cadastrados junto a Autoridade Sanitária para este fim”. A referência ao fármaco também está no Art. 25, parágrafo único: “As vendas de medicamentos a base da substância Misoprostol constante da lista ‘C1’ (outras substâncias sujeitas a controle especial) deste Regulamento Técnico, ficarão restritas a estabelecimentos hospitalares devidamente cadastrados e credenciados junto a Autoridade Sanitária competente”.

A partir dessa normativa, o fornecimento ou venda do misoprostol passou a ser enquadrado como crime contra a saúde pública, conforme Artigo 273 do Código Penal, que versa sobre a “venda ou distribuição para o consumo de medicamento sem registro no órgão de vigilância sanitária ou de procedência ignorada”. A pena, nesse caso, é de prisão de 10 a 15 anos e multa, punição muito superior à de homicídio ou estupro.

Pesquisa realizada por Mariana Prandini Assis e Joanna N. Erdman (2021) mostra que a regulação e o controle do misoprostol no Brasil é mais uma forma de criminalização do aborto. As pesquisadoras apontam que as cortes judiciais brasileiras têm usado a retórica da saúde pública e do aborto inseguro para criminalizar a distribuição do misoprostol pelo setor informal. Na análise de 331 casos judiciais envolvendo o misoprostol, 72% foram enquadrados no Artigo 273 do Código Penal.

Ainda hoje, cada hospital público, para receber o medicamento comprado pelo Ministério da Saúde, deve fazer um cadastro junto à secretaria de vigilância sanitária do seu estado. As instituições privadas também fazem o cadastramento, mas a compra ocorre diretamente com um dos 12 distribuidores da empresa Hebron (atual fabricante do medicamento no Brasil, cujo nome comercial é Prostokos), com fiscalização da Anvisa e da Polícia Federal.



1998 – 2006

A produção nacional e as novas restrições da Anvisa à publicidade e venda pela Internet

Segundo Pazello (2010, p. 84), ao longo dos anos, um conjunto de resoluções e portarias editadas pelo Ministério da Saúde e Anvisa “não apenas baniu o misoprostol das farmácias do país, mas também limitou seu uso aos hospitais cadastrados, criando uma rotina altamente burocrática para sua aquisição e emprego, além de proibir a divulgação de informação, por qualquer meio, sobre esse medicamento para o público em geral”. Além da interrupção do acesso ao misoprostol pelas mulheres brasileiras, outro efeito das restrições foi o desinteresse da indústria farmacêutica por continuar produzindo a medicação no Brasil. De acordo com Corrêa:

“No final dos anos 1990 assistimos uma confluência da pressão internacional antiaborto sobre o produtor do Cytotec e as novas regras brasileiras impostas pela Anvisa, que não só colocou o misoprostol na lista C1 como exigiu uma mudança na bula para deixar claro seu efeito abortivo. A companhia farmacêutica decidiu suspender a fabricação. Acho que entre 1999 e 2003, ou 2004, não havia no mercado misoprostol feito no Brasil, só havia o produto contrabandeado, muitas vezes vendido por traficantes de drogas. Isso criou um problema enorme para o uso obstétrico do produto. Mas como o fármaco estava no domínio público, era possível fabricá-lo sem custo de patentes. Assim sendo, a partir esforço de médicos da Febrasgo (Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia), especialmente do Dr. Anibal Faúndes, a farmacêutica Hebron começaria a produzir misoprostol no Brasil, exclusivamente para uso hospitalar, cujo nome comercial é Prostokos, Essa foi uma importante iniciativa, contudo é intrigante, ao meu ver, que não tenha havido, então, um maior investimento dos médicos no sentido de retirar o misoprostol da C1”.

Não bastasse isso, a Anvisa decidiu, em 2006, dificultar ainda mais não só o acesso, mas a divulgação de informação sobre o misoprostol, a partir da Resolução 911 e de sua correção, pela Resolução 1.050, com o mesmo texto, porém com alguns ajustes. Seu objetivo é:

“Determinar a suspensão em todo território nacional das publicidades veiculadas por meio de fóruns de discussões, murais de recados e sítios na Internet, dos medicamentos a base de MISOPROSTOL divulgados com denominações tais como CYTOTEC, CITOTEC E PROSTOKOS, bem como materiais e equipamentos indicados para práticas abortivas, uma vez que esses medicamentos que estão sendo anunciados não são registrados na ANVISA, bem como não podem ser divulgados ao público leigo por serem de venda sob prescrição médica e restrito ao uso de hospitais” (maiúsculas do documento original).

Conforme apontou Pazello (2010), o texto sugere um viés ideológico, especialmente quando substitui o termo “fins abortivos” da Resolução 911, por “práticas abortivas”, na Resolução 1.050. “A ideia de ‘fim/finalidade’ é sutilmente diferente da de ‘prática’: enquanto o primeiro termo indica término/objetivo-conclusão, o segundo indica continuidade, hábito, atividade habitual. A diferença aspectual entre os substantivos é relevante, pois reforça o viés ideológico do texto. Um dos argumentos mais utilizados contra a descriminalização do aborto parte da ideia de que as mulheres não possuem discernimento moral suficiente e que, portanto, uma vez modificada a legislação, a prática (do aborto) seria banalizada” (PAZELLO, 2010, p. 99).

Considerando o contexto mais amplo, de quase completo bloqueio da discussão sobre o aborto pelo legislativo brasileiro, há anos, a pesquisadora ainda aponta que as resoluções da Anvisa para limitar o acesso ao misoprostol, além de “fazerem parte do jogo de politização do debate em torno do aborto para obstaculizar a revisão da legislação punitiva, se alinham com a tendência no Legislativo de elaborar propostas sob a ótica da criminalização de condutas na esfera da regulação da Internet, da saúde reprodutiva e da sexualidade” (PAZELLO, 2010, p. 102).



HOJE

Após 35 anos de sua descoberta, o misoprostol continua “na cadeia”

“Eu digo que, no Brasil, o misoprostol está na cadeia desde 1998”, lamenta Sonia Corrêa, para quem a tentativa de restringir completamente o medicamento é uma “jabuticaba”, ou seja, uma “invenção” exclusivamente brasileira, instalada na norma há 23 anos.

“Até 2019, somente dois outros países proibiam completamente ou impunham restrições sanitárias ao misoprostol comparáveis às brasileiras: o Egito e a Palestina. O misoprostol está aprovado para uso em todos os países da América Latina, exceto o Brasil. Está no mercado normalmente. Na Argentina, Bolívia, Colômbia, Uruguai e México o aborto legal é realizado com misoprostol ou com a versão combinada com mifepristona. O mesmo acontece em vários países asiáticos. Indonésia tem uma vasta rede de acesso ao misoprostol, mesmo tendo restrições bastante rigorosas em relação ao aborto. E em muitos outros países, como acontece na África, o misoprostol é comprado pela internet e chega pelo correio, pois isso não é proibido. No Brasil isso está criminalizado. Ou seja, não só está na C1, como ainda há a proibição das portarias da Anvisa dos anos 2000, que impedem o acesso via e-commerce. A situação brasileira é a pior do mundo nesse sentido”, conclui a pesquisadora.

Com relação à criminalização “social” do medicamento, Pazello (2010) argumenta que o misoprostol, em especial na formulação do Cytotec, é ainda tratado pela mídia a partir da ótica policial, ou seja, como um medicamento abortivo e de venda ilegal. Esse enquadramento desconsidera as evidências científicas da segurança de seu uso e a gravidade de outras questões que tangenciam a discussão criminal, que é o índice de morte materna em decorrência de abortos inseguros no país, diretamente relacionado à criminalização do aborto e do próprio misoprostol.

A importância do misoprostol é evidente em documentos da Organização Mundial da Saúde (OMS) desde 2005, que não só incluiu o medicamento em suas diretrizes de atenção ao aborto, mas também no rol de medicamentos essenciais, inclusive para emprego em hemorragia pós-parto, principal causa de mortalidade materna em todo o mundo.

No entanto, há um senão a observar. Para dirimir a pressão das forças e Estados que se opõe ao aborto, a OMS incluiu, em seus documentos, a linguagem do parágrafo 8.25 do Programa de Ação da Conferência do Cairo: “Siempre que la legislación nacional lo permita y que sea aceptable culturalmente” (“sempre que a legislação nacional permita e que seja aceitável culturalmente”, tradução livre). Esse texto condiciona a aplicação das diretrizes à legislação nacional sobre o aborto, questão que reflete o contexto de 2005, quando o primeiro manual foi aprovado, pois o governo Bush estava engajado numa ferrenha ofensiva contra aborto nas arenas das Nações Unidas.

Com efeito, essa condicionante dificulta a adoção plena das diretrizes OMS no Brasil, onde o acesso ao produto já é draconianamente restringido. Mesmo que o uso do fármaco seja autorizado pela autoridade sanitária brasileira desde 1986, que ele esteja indicado pela Norma Técnica do Ministério da Saúde “Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes” e listado na Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename), do Ministério da Saúde, desde 2010, o medicamento segue “na cadeia”.

Por estar na Rename, a disponibilidade desse fármaco é uma exigência da Anvisa para o funcionamento dos serviços de atenção obstétrica e neonatal do Brasil, conforme Resolução nº 36/2008. Mesmo assim, segundo Morel e Machado (2020), menos de 25% dos mais de 4.000 estabelecimentos com leitos de obstetrícia disponíveis para o SUS receberam o medicamento na última compra divulgada com detalhes pelo Ministério da Saúde, de 2016. Na compra de 2018, o Ministério não detalhou o número de hospitais para os quais o misoprostol foi distribuído. Apesar da compra centralizada não impedir que os hospitais obtenham o medicamento direto com fornecedores, em 2018, apenas 1.180 estabelecimentos de saúde realizaram a aquisição do misoprostol diretamente com a Hebron. Os motivos para a escassez são diversos e esbarram na regulamentação restritiva da própria Anvisa, na burocracia para adquirir o medicamento e no estigma do aborto.

Em nossa conversa, Sonia Corrêa sublinhou que, mesmo na grande maioria de países em que o acesso ao aborto é restringido, não há regulamentação ou restrição específica ao misoprostol. A negação do direito à informação e ao atendimento de saúde adequado leva, todos os anos, a milhares de mortes evitáveis por abortos inseguros. O estigma sobre o procedimento e a falta de adequada implementação da permissão legal da interrupção da gestação em caso de anencefalia fetal, risco de morte materna e estupro, também gera danos irreparáveis. É o que acontece com meninas de 10 a 13 anos vítimas de violência sexual, obrigadas a manter gestações resultantes de estupro.

O cenário é desolador e setores da sociedade insistem em criminalizar mulheres e pessoas que engravidam por lutarem por seus direitos e por sua autonomia. Tentam nos manter presas em uma lógica patriarcal, machista, racista, capacitista e LGBTfóbica. Por isso, é preciso quebrar as grades e, nesse processo, levar conosco, para ver a luz, o misoprostol. A luta por justiça reprodutiva também perpassa nossa apropriação das tecnologias e das melhores evidências da área da saúde.

Este artigo foi lançado no Boletim Futuro do Cuidado # 6/ Agosto de 2021, que pode ser lido aqui.

Referências

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